A reflexão de Guevara sobre o socialismo não se limita unicamente a Cuba
ou América Latina: ela é universal, mundial, internacionalista. Para o Che o verdadeiro
socialista é aquele que considera sempre os grandes problemas da humanidade como
seus problemas, que não se sente alheio a eles, muito pelo contrário.
Eduardo Mancuso, via Carta
Maior
Apropriar-nos de forma criativa da herança guevarista, resgatando a atualidade
que esta conserva frente às grandes mudanças globais e as metamorfoses sociais,
políticas e culturais que marcaram a passagem do século 20 ao 21, é um desafio bastante
estimulante. Nas palavras do próprio Che, “se novos fatos determinam novos conceitos,
não se tirará nunca sua parte de verdade daqueles que tenham passado.”
Muitos não percebem a atualidade do pensamento guevarista. Porém, quando
nos debruçamos sobre ele, descobrimos que muitas das mudanças ocorridas nas últimas
décadas, encontram respostas no legado do Che, tanto programáticas quanto estratégicas.
A “filosofia da revolução” do Che é, nos dias de hoje, absolutamente contemporânea,
tão vívida como a permanência icônica e universal de sua imagem.
“A real
capacidade de um revolucionário se mede por saber encontrar táticas revolucionárias
adequadas em cada mudança de situação, em ter presente todas as táticas e explorá-las
ao máximo.”
O intelectual cubano Luiz Salazar propõe uma tese muito interessante. Diz
ele que voltar à obra do Che nos permite ver no significado de suas utopias as
“verdades do futuro” (Vitor Hugo). Defende que podemos encontrar no acervo político
do Che, novas “soluções revolucionárias”.
O socialismo para nós continua sendo pré-condição para que a humanidade
possa constituir uma nova civilização, alternativa a barbárie moderna. E o Che ensinava:
“Para construir o comunismo simultaneamente com a base material há que construir
o homem novo.” Não devemos esquecer, também, que para o Che, “o dever de todo o
revolucionário é fazer a revolução”, lutar por isso persistentemente. Para o Che,
a construção do socialismo exige uma radical revolução democrática, participativa,
além de uma grande revolução cultural.
A práxis revolucionária guevarista buscou sempre recuperar a essência subversiva
dos clássicos do marxismo. Por exemplo, o maior marxista latino-americano da primeira
metade do século XX, o peruano José Carlos Mariátegui, escrevia em 1928: “Contra
uma América do Norte capitalista, plutocrática, imperialista, só é possível opor
de maneira eficaz uma América, latina ou ibérica, socialista”. Quatro décadas mais
tarde, Che Guevara retoma esta bandeira socialista e antiimperialista, concluindo
sua famosa “Mensagem a Tricontinental” afirmando: “Ou revolução socialista ou caricatura
de revolução!”
Mas qual socialismo o Che defendia? Cada vez mais crítico nos seus últimos
anos em relação às experiências socialistas “reais”, europeia e chinesa, Guevara
buscava um novo caminho para Cuba e para nossa América Latina. Para enfrentar esse
desafio ele também coincidia com as ideias de Mariátegui, que havia declarado:
“Não queremos, certamente, que o socialismo seja nas Américas calco e cópia. Deve
ser criação heróica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, com nossa
própria linguagem, ao socialismo indo-americano.”
Boa parte da reflexão do Che e de sua prática política, sobretudo nos anos
60, tinha como meta sair do impasse que a caricatura de socialismo burocrático do
modelo soviético impunha aos povos na América Latina e no Terceiro Mundo.
Segundo Michael Lowy, “o motor essencial desta busca de um novo caminho
– mais além de questões econômicas específicas – é a convicção de que o socialismo
não tem sentido – e não pode triunfar – se não representa um projeto de civilização,
uma ética social, um modelo de sociedade totalmente antagônico aos valores do individualismo
mesquinho, do egoísmo feroz, da competição, da guerra de todos contra todos da civilização
capitalista”.
Como lembra Lowy, o Che tinha perfeitamente claro que a construção do socialismo
é inseparável de certos valores éticos. Na famosa entrevista de Guevara a um jornalista
francês em julho de 1963, ele insistia: “O socialismo econômico sem a moral comunista
não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo contra a alienação.
(...) Se o comunismo passa por cima dos fatos de consciência, pode ser um modo de
distribuição, mas não será mais uma moral revolucionária.” O Che sabia que se o
socialismo tentasse competir com o capitalismo no terreno do adversário, o terreno
do produtivismo e do consumismo, utilizando suas próprias armas – o mercado e a
concorrência – estava condenado ao fracasso.
O socialismo para o Che era o projeto histórico de uma nova sociedade, baseada
em valores de igualdade, solidariedade, livre discussão e ampla participação popular.
Lowy salienta que tanto suas críticas crescentes ao modelo soviético quanto sua
prática como dirigente político e sua reflexão teórica sobre a experiência cubana
são inspirados por esta utopia revolucionária. Em seus escritos econômicos a questão
da planificação socialista ocupa um lugar central, e nos seus últimos anos a concepção
de democracia socialista na planificação começa a aparecer como essencial.
Quando critica o Manual de Economia
Política da Academia de Ciências da URSS, Che Guevara avança um princípio democrático
fundamental, capaz de colocar de cabelos em pé os burocratas stalinistas (e de outros
tipos também): numa verdadeira planificação socialista é o próprio povo, os trabalhadores,
as massas que devem tomar as grandes decisões econômicas.
Contra a monopolização das decisões por tecnocratas ou burocratas “comunistas”,
o Che insistia na necessidade de uma verdadeira participação popular: os grandes
problemas sociais e econômicos de uma sociedade são políticos e devem ser objeto
de debate e decisão democrática pela maioria. Fica claro que a reflexão de Guevara
sobre o socialismo não se limita unicamente a Cuba ou América Latina: ela é universal,
mundial, internacionalista. Para o Che o verdadeiro socialista é aquele que considera
sempre os grandes problemas da humanidade como seus problemas, que não se sente
alheio a eles, muito pelo contrário.
Numa bela síntese apresentada por Michael Lowy no Fórum Social Mundial de
Porto Alegre encontramos o “espírito” da filosofia da revolução guevarista: “O internacionalismo
para Guevara – ao mesmo tempo modo de vida, fé profana, imperativo categórico e
pátria espiritual – era inseparável da ideia mesmo de socialismo, enquanto humanismo
revolucionário, enquanto emancipação dos explorados e oprimidos do mundo inteiro,
numa luta sem tréguas nem fronteiras com o imperialismo e a ditadura do capital.”
E, segundo Lowy, os herdeiros do Che, a esquerda marxista e revolucionária,
nas últimas décadas, “aprendemos a enriquecer nossa ideia do socialismo com a contribuição
do movimento das mulheres, dos movimentos ecológicos, das lutas de negros e indígenas
contra a discriminação. Assim é o processo de construção do projeto socialista:
não um edifício pronto e acabado, mas um imenso canteiro de obras, onde se trabalha
para o futuro, sem esquecer as lições do passado.”
Ao fim e ao cabo, como disse o velho Marx, o mais importante é a luta.
Afinal, como gostavam de lembrar, realisticamente, tanto Lenin como Walter
Benjamin: o capitalismo não vai morrer de morte natural.
Eduardo Mancuso é historiador e membro do comitê organizador
do FSM Grande Porto Alegre.
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