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De volta a Havana em 1981, Fangio (e) reencontra Faustino Perez, chefe da operação do sequestro de 1958 |
Bruno Ceccon, de Havana, via Gazeta
Esportiva Net
Para Juan Manuel Fangio, um “sequestro amável”. Para seus captores, uma
“retenção patriótica”. Impedido por seguidores de Fidel Castro de participar da
corrida organizada pelo ditador Fulgêncio Batista em 1958, o argentino pentacampeão
mundial de Fórmula 1 reencontrou os algozes repetidas vezes e manteve laços de amizade
com alguns deles até sua morte, em 1995.
Com a corrida, Batista pretendia tirar o foco do progresso da insurreição
comandada por Fidel, o que seria potencializado pelas comemorações do dia 24 de
fevereiro, data que marca o começo do processo de independência de Cuba. Os revolucionários
chegaram a seguir os passos de Fangio antes da edição de 1957 da prova, vencida
pelo argentino e explorada em larga escala pelo ditador, mas o sequestro ficou para
o ano seguinte.
“Queríamos chamar a atenção sobre o processo revolucionário cubano e fazer
com que o mundo conhecesse a existência da guerrilha na Sierra Maestra e a luta
clandestina nas cidades. Em poucas palavras, que se conhecesse mais de Cuba e sua
confrontação por meio das armas. Por isso, o sequestro seria uma breve retenção,
uma retenção patriótica”, explica Arnol Rodriguez, um dos participantes da ação,
no livro Operación Fangio, vendido em
sebos de Havana por cerca de R$2,50.
Dos 82 guerrilheiros que viajaram do México para Cuba sob as ordens de Fidel
Castro, apenas 14 sobreviveram às batalhas com o exército regular após um desembarque
desastroso na Ilha em dezembro de 1956. Refugiado na Sierra Maestra, região remota
da ilha, o comandante soube como se aproveitar da imprensa para fazer propaganda
e ganhar o apoio da opinião pública, inclusive no exterior.
Logo em fevereiro de 1957, Fidel recebeu o jornalista norte-americano Herbert
Matthews, do New York Times. O repórter
foi levado ao local do encontro de forma clandestina e retratou o cubano como um
líder jovem e carismático. A matéria teve grande repercussão, especialmente porque
o governo de Batista assegurava que o revolucionário estava morto. No final de abril,
ele concedeu entrevista para a CBS, emissora de TV dos Estados Unidos.
Detido em três ocasiões, Arnol Rodriguez passou mais de seis meses preso
e, na época do sequestro, era o responsável pelo setor de propaganda dos revolucionários.
Por meio de contatos na imprensa, ele apurou data e horário do desembarque de Fangio
em Havana, além do quarto em que o piloto ficaria no Hotel Lincoln. “Havia chegado
o momento de um enfrentamento entre a propaganda revolucionária e a propaganda mercenária
da ditadura”, relatou.
Desta forma, o argentino foi vigiado desde sua chegada ao aeroporto de Havana,
no dia 21 de fevereiro de 1958, uma sexta-feira. A princípio, os revolucionários
acreditavam que o Hotel Lincoln não era o local adequado para o sequestro e se organizaram
para tentar a ação na saída de uma emissora de televisão, mas havia muita gente
no local. À noite, o piloto reconheceu o circuito a pé, porém estava fortemente
protegido.
Com a proximidade da corrida, os revolucionários resolveram executar a captura
no Lincoln. Divididos em três carros, cada um com uma metralhadora, nove seguidores
de Fidel se dirigiram ao local. Um deles ligou para o quarto do piloto se passando
por um jornalista e apurou que o argentino desceria para o jantar. A porta do elevador
abriu-se às 20h40 e Fangio, ao lado de seu empresário, encontrou alguns amigos que
o esperavam.
Imediatamente, Manuel Uziel se aproximou do grupo e chamou o piloto. “Para
que me quer?”, questionou Fangio. “Sou do Movimento 26 de Julho e vamos sequestrá-lo”,
anunciou o cubano. O argentino sorriu e pareceu achar que se tratava de uma brincadeira,
mas mudou de ideia ao sentir uma pistola contra suas costelas. Um dos acompanhantes
do astro fez menção de reagir e ouviu a ameaça: “Se você se mexer outra vez, eu
disparo.”
Ao lado do companheiro Primitivo Aguilera, Uziel conduziu Fangio para a
rua sob a mira do revólver. O restante do grupo, incluindo uma mulher grávida, protegia
a operação do lado de fora. O piloto foi colocado em um carro Plymouth verde e levado
até a casa de Uziel, que apresentou o pentacampeão do mundo à mulher e ao filho
pequeno.
Como qualquer dano a Fangio seria desastroso para a reputação da guerrilha,
os captores procuraram tratá-lo de forma cordial. Ao encontrar o piloto, Faustino
Perez, chefe da operação, cumprimentou-o e pediu desculpas, dizendo que “Cuba não
estava para festas”. “O corredor parecia sereno e chegou a oferecer cigarros aos
presentes”, relatou Arnol Rodriguez. Colocado em outro veículo, foi levado a uma
nova casa, em um bairro de classe média.
Após o sucesso da operação de captura, os revolucionários enviaram a seguinte
mensagem a membros da imprensa: “Fala o 26 de Julho. Fangio está em nosso poder,
não competirá amanhã.” Os captores contataram a embaixada argentina e garantiram
que a integridade física do piloto seria preservada, além de solicitar que a família
do astro na Argentina fosse informada.
Fangio jantou na segunda casa e depois conversou com todos os presentes.
De acordo com Rodriguez, contou de sua visita a Cuba no ano anterior e se interessou
pelas vidas pessoais dos sequestradores, além de demonstrar surpresa com a juventude
do grupo e a disposição de lutar. Descontraído, disse que sua mulher já o teria
encontrado se estivesse em Havana.
“Ele se mostrava tranquilo e talvez surpreso pelo tratamento oferecido.
Era um ambiente aprazível, não isento de certa tensão, que todos nos empenhávamos
em encobrir”, relatou Rodriguez em seu livro. “Ele nos observava e analisava, na
verdade nos esquadrinhava. Alguns de nós fazíamos exatamente o mesmo com ele.”
No dia seguinte, Fangio recebeu o café da manhã no quarto, tomou banho,
fez a barba e vestiu terno. Ao ver os jornais com a notícia do sequestro, teria
dito: “Se vê que vocês estão organizados e sabem o que querem!” No dia 24 de fevereiro,
os revolucionários procuraram colocar o argentino a par do momento político da Ilha.
Um encontro com jornalistas chegou a ser cogitado, mas a ideia foi descartada em
seguida.
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Arnol Rodriguez (d) visita Fangio em Balcarce, na Argentina, sua cidade natal, em 1992 |
Segundo o relato de Rodriguez, o piloto preferiu não acompanhar a prova
e apenas ouviu o começo da disputa pelo rádio. Em seguida, sentou-se no terraço
e escutou músicas instrumentais. Informado do acidente com vítimas fatais que provocou
o final da corrida, ficou seriamente abalado. Os revolucionários queriam libertar
Fangio logo depois do evento para evidenciar que a única intenção foi impedir sua
participação na disputa.
Os captores combinaram o local da soltura com pessoas ligadas à embaixada
argentina. Após certa tensão, o processo de entrega, chefiado por Rodriguez, teve
sucesso. “Na hora da devolução, Fangio, quase sorrindo, disse aos três homens que
o esperavam com caras serias: ‘Esses são meus amáveis sequestradores, meus amigos
sequestradores’”, relatou o cubano. O piloto portava uma carta dirigida ao embaixador,
a seu país e ao povo argentino.
O Museu da Revolução, uma das principais atrações turísticas de Cuba, exibe
um texto escrito de próprio punho por Fangio, datado de 24 de fevereiro de 1958,
dia de sua soltura. “Esclareço que durante meu sequestro amável o trato foi completamente
familiar, com atenções cordiais e somente me pediram desculpas por esta situação,
alheia a minha pessoa”, diz a mensagem assinada pelo piloto.
Para os revolucionários, a ação foi um sucesso à medida que ganharam a simpatia
de Fangio e a notícia foi veiculada nos cinco continentes. “É provável que, em alguns
lugares, determinadas pessoas se inteiraram pela primeira vez da existência de Cuba
e souberam que se tratava de um país em luta tenaz por sua soberania, sua liberdade
e sua independência”, escreveu Arnol Rodriguez.
Em 1981, Fangio voltou a Cuba como membro de uma delegação da Mercedez-Benz
para assuntos comerciais e foi recebido no aeroporto por Rodriguez, então integrante
do Ministério de Comércio Exterior. Após reconhecer um de seus sequestradores, o
já ex-piloto cumprimentou-o afetuosamente. Durante a semana que ficou em Havana,
reencontrou outros captores, conheceu Fidel Castro e viu alguns dos logros da Revolução.
Nos anos de 1982 e 1984, Rodriguez foi a Buenos Aires e voltou a encontrar
Fangio. Em 1983, Faustino Perez, chefe da operação de sequestro, enviou uma saudação
a Fangio com a assinatura “seus amigos sequestradores” para festejar o 25º aniversário
da “retenção patriótica”. Já em 1992, o argentino mandou condolências pela morte
de Perez.
No mesmo ano de 1992, Fangio convidou os captores para o aniversário de
seis anos do museu que leva seu nome na cidade de Balcarce, sua terra natal. Na
ocasião, Rodriguez conheceu a família do argentino e ofereceu ao acervo do memorial
um troféu pela corrida que o piloto não pôde participar. Em 1995, autorizado pela
sobrinha do amigo seriamente doente, o cubano foi um dos poucos a visitá-lo. No
mesmo ano, Fidel Castro e Rodriguez enviaram coroas de flores ao enterro.
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