Nossos países, uns mais, outros ainda nem tanto, comprovam que não há verdade
que alguém possa esconder para sempre. Que não há silêncio absoluto para a memória:
alguma hora, alguma vez, ela se fará ouvir, fará soar o que quiseram calar.
É um processo que toca fundo muitas fibras tensas – inclusive as da dor,
da humilhação, do esquecimento. E são essas as cicatrizes que poderão impedir novas
feridas, novas sangrias. Querer calar o que aconteceu, pretender negar a memória
e adormecer a justiça, é anular o presente. Represar essas águas é inútil: elas
saberão retomar seu fluxo. Também delas é feito o presente, e são elas que conduzirão
ao futuro.
No dia 11 de junho de 2012, uns meninos que brincavam num terreno do subúrbio
de San Fernando, vizinho a Buenos Aires, acharam três estranhos tonéis. Estavam
cheios de cimento. Um dos tonéis havia tombado, e no tombo, o cimento havia se quebrado.
Os meninos viram ossos misturados ao cimento. Ossos humanos. A polícia logo descobriu
que nos outros dois tonéis também havia cimento e ossadas humanas. Depois das análises
dos médicos legistas, confirmou-se que uma das ossadas pertencia a um cubano sequestrado
e morto 36 anos antes, durante a ditadura encabeçada pelo general Jorge Rafael Videla.
Desde aquele tempo, seu paradeiro era mistério absoluto.
No dia 9 de agosto de 1976, Crescencio Nicomedes Galañena Hernández e Jesús
Cejas Arias saíram da embaixada cubana em Buenos Aires, no bairro de Belgrano, onde
trabalhavam na parte administrativa. Oito dias depois, a agência norte-americana
de notícias Associated Press recebeu um envelope, despachado pelo correio em Buenos
Aires mesmo, com as credenciais dos dois e um bilhete que dizia o seguinte: “Nós,
Jesús Cejas Arias e Crescencio Galañena, ambos cubanos, nos dirigimos aos senhores
para através desta comunicar que desertamos da embaixada para usufruir da liberdade
do mundo ocidental.” A nota não estava assinada. O ministério argentino de Relações
Exteriores confirmou a autenticidade das credenciais. E a ditadura que sufocava
o país não precisou explicar o sumiço dos cubanos: haviam desertado e ponto final.
Ao longo do tempo e dos processos judiciais que buscam restabelecer a verdade,
resgatar a memória e aplicar a justiça na Argentina, comprovou-se que eles haviam
sido sequestrados e levados para a Automotores Orletti, um dos campos de concentração
clandestinos da ditadura. Documentos norte-americanos indicaram que o agente da
CIA Michael Towley e o cubano Guillermo Novo viajaram dos Estados Unidos até Buenos
Aires para interrogar os dois.
A maior parte dessa história já havia sido reconstruída, e os responsáveis
pelas barbaridades cometidas na Automotores Orletti foram julgados e condenados.
O uso de tonéis de combustível recheados de cimento para esconder ossadas humanas
era conhecido. Aliás, foi assim, num tonel, que Juan Gelman, o maior poeta vivo
da América Hispânica, encontrou em 1989 o que restou de seu filho Marcelo. Agora,
com os três tonéis achados pelos meninos que brincavam num terreno baldio de um
subúrbio de Buenos Aires, ficou claro que pode haver muitos outros espalhados ao
deus-dará. A polícia investiga para saber se esses três tonéis sempre estiveram
no mesmo baldio, ou se foram levados para lá em tempos mais recentes.
Ao longo dos últimos nove anos, e da mesma forma que havia acontecido entre
1985 e 1989, não há uma semana sem que os argentinos tropecem com novas histórias
de seus tempos mais tenebrosos. Não há uma semana sem que algum sobrevivente conte
seu calvário, reconheça alguns de seus algozes, sacuda o passado. Os torturadores
e assassinos, os ladrões de bebês e os violadores de mulheres estão sendo julgados,
ou seja, estão tendo um direito elementar que negaram às suas vítimas: o direito
de defesa. E a memória volta ao seu rumo, a verdade sai do silêncio infame ao qual
quiseram que fosse condenada, e a justiça se impõe.
Não há presente sem passado. Não há presente sem memória. Não há futuro
sem presente. Assim, dessa simplicidade, é feita a história. É feita a vida.
Também por esses dias, do outro lado da Cordilheira dos Andes, os chilenos
foram de novo tocados pela voz da memória. Há quem se incomode, e muito, com esse
som, e é natural que seja assim.
O líder do partido do presidente Sebastián Piñera na assembleia legislativa,
deputado Alberto Cardemil, por exemplo, anda muito aborrecido. É que documentos
até agora secretos revelam a vasta rede de informações da ditadura do general Augusto
Pinochet. Junto com as atividades da rede, vão sendo revelados nomes de informantes.
Alberto Cardemil era um deles, e dos mais eficientes. Denunciou vários integrantes
da Vicaria da Solidariedade, órgão da igreja católica que ajudava as vítimas da
ditadura. Era um dos consultores de Pinochet (aliás, foi seu vice-ministro de Interior)
sobre os chilenos que podiam e os que não podiam voltar ao Chile, mesmo nos estertores
da ditadura. Está lá, com sua letra, o veto ao escritor Ariel Dorfman, classificado
de “ativista intelectual” contra o regime. Esse veto traz a mesma assinatura que
o deputado Alberto Cardemil estampa nos documentos legislativos, na sua condição
de líder do partido da Renovação Nacional, do presidente Sebastián Piñera.
Quantos mais, como o deputado
e o presidente, teriam preferido o silêncio dos tempos? No fundo, sabem que nem
eles, nem ninguém, consegue esconder a verdade para sempre. E sabem que nós sabemos
que esse é o medo dos infames de cada um dos nossos países. Esse é o pesadelo que
sacode suas noites: saber que sua impunidade pode acabar. Que alguma hora a voz
da verdade e da memória poderá se fazer ouvir, e que então eles, os responsáveis
pelo horror e pelo esquecimento, perderão de vez sua pequena e miserável vitória,
sua única conquista: a impunidade.
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