Agora que Chavez não existe mais, o que permanece é o chavismo. Até então,
o oposicionismo venezuelano enfrentava um líder carismático de carne e osso. A partir
de agora, enfrentará uma lenda.
Antonio Lassance, via Carta
Maior
A morte do presidente Hugo Chavez, na Venezuela, será chorada por muitos
e comemorada por poucos. Neste momento em que grande parte da mídia internacional
dedica seu tempo a falar mal do líder morto e torce para que ele permaneça a sete
palmos debaixo do chão, seria bem melhor tentar entender Chavez enquanto figura
política.
O fenômeno político que na Venezuela era conhecido pelo nome de Hugo
Chavez transcende aquele país, à medida que nos traz à lembrança uma série de questões
de primeira ordem para a compreensão da relação que o povo estabelece com a política.
Por exemplo, os fenômenos em que a liderança política encarna um processo de ascensão
popular que caracteriza o que pode ser chamado de democracia plebiscitária.
Chavez suscita ainda questões como a do papel da liderança carismática,
na qual a supremacia de uma orientação política é calcada no heroísmo e no sacrifício
– como fez Vargas, no Brasil. Chavez mostrou, de forma categórica, o quanto o nacionalismo
permanece como a grande ideologia política de nosso tempo – como fez Allende, no
Chile. Sua alcunha de “comandante” e sua patente de tenente-coronel eram a prova
incontestável da forte presença dos militares na política latino-americana e de
sua propensão bonapartista, ou seja, de se firmar acima de tudo e de todos como
solução política dramática e enérgica, em momentos de crise profunda e de desgaste
da política tradicional – assim como fez Perón, na Argentina.
Indo ainda mais longe, cai como uma luva, pelo desfecho trágico da trajetória
de Chavez e pela comoção que se avoluma na Venezuela, a comparação com Júlio César
– o romano e o shakespeariano. O cesarismo é, para Chavez, uma analogia perfeita
para entender o que este presidente foi para a Venezuela e o que pode esse país
tornar-se após essa morte.
O cesarismo de Chavez se afirmou em três dimensões. Assim como César,
Chavez foi responsável pela dissolução da política aristocrática e pela popularização
do poder, no sentido de que a sorte dos governantes passava a depender não de instituições
sólidas e regras rígidas do jogo político; não de coalizões claramente organizadas
em partidos; não mais de disputas com resultados previsíveis. Com Chavez, a política
passava a extrair seus resultados do poder de mobilização popular de seu líder.
O azar da oposição venezuelana foi jamais ter produzido alguém minimamente
capaz de disputar com Chavez de igual para igual. Essa medíocre oposição jamais
conseguiu produzir um líder popular com a gama de atributos ostentada por Chavez.
O segundo aspecto é a visão heroica e grandiosa do poder. O bolivarianismo
de Chavez e sua retórica latino-americanista eram bem mais que retórica. Eram a
intenção verdadeira de encarnar um projeto de afirmação regional daquele país e
a busca por um protagonismo continental que a Venezuela vez por outra acalentou,
desde Simon Bolívar. A rivalidade chavista aguçava as diplomacias continentais,
favoráveis ou contrárias ao seu projeto de Aliança Bolivariana para os Povos da
Nossa América (Alba).
Chavez foi muitas vezes um espantalho, aparentemente inofensivo em seu poder
de fogo, mas bastante eficiente em sua tarefa de atiçar os adversários com seu sul-americanismo
antiamericano. Diante do espantalho, os que a ele faziam oposição caíram no erro
de se comportar exatamente como corvos.
O terceiro aspecto é o do destino trágico. A morte de César foi aguardada
e comemorada pelos que supunham que seu desaparecimento levaria junto, para o túmulo,
a pessoa e o que ela representava. Mas, assim como na tragédia romana, o destino
da Venezuela passa a estar umbilicalmente ligado aos desdobramentos do chavismo.
Agora que Chavez não existe mais, o que permanece é o chavismo, como Gilberto Maringoni
antecipou recentemente em artigo na Carta Maior.
O velório de Chavez é, no mínimo, o primeiro comício da campanha presidencial
venezuelana. A depender do desenrolar dos fatos, pode ser o primeiro ato da institucionalização
de um novo regime, erigido à sombra de sua liderança sacralizada. Até então, o oposicionismo
venezuelano enfrentava um líder carismático de carne e osso. A partir de agora,
enfrentará uma lenda.
Antonio Lassance é cientista político e pesquisador
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As opiniões expressas neste
artigo não refletem necessariamente opiniões do Ipea.
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