Próxima etapa da Revolução Bolivariana deverá combinar participação
estatal com capital privado, nacional ou estrangeiro.
Breno Altman, via Opera
Mundi
O resultado eleitoral venezuelano, com o triunfo do candidato chavista,
é fato político amparado pela Constituição local. A reduzida vantagem de
Nicolas Maduro sobre o direitista Henrique Capriles, inferior a 300 mil votos
(menos de 2% dos apurados), não anula a legitimidade do processo ou do mandato
conquistado nas urnas. Com mais de 50% dos eleitores sufragando o sucessor de
Hugo Chavez, a regra democrática está sendo seguida à risca. A maioria, mesmo
por escassa margem, tem o direito de decidir o destino nacional.
A oposição conservadora pode estrilar e urrar, o que também está dentro
do jogo, desde que não volte a recorrer ao golpismo e à violência. Mas não há
qualquer elemento concreto e provado que coloque sob suspeita a peleja
institucional do domingo, dia 14. A história, diga-se, está cheia de situações
semelhantes. Na mais célebre entre essas, nos Estados Unidos, John Kennedy
(assassinado em 1963) venceu Richard Nixon, em 1960, por apenas 0,1% dos votos.
Quem venceu, levou. Quem foi derrotado, voltou para a fila. Ou para o submundo
do magnicídio.
Hugo Chavez atravessou cenário parecido quando perdeu, por menos de 20
mil sufrágios, referendo sobre emenda constitucional, em 2007. Apesar de vários
assessores tentarem convencê-lo a pedir recontagem, preferiu reconhecer, de
pronto, a vitória de seus adversários. A propósito, sua única derrota em 17
disputas pelo voto popular no período de 14 anos no qual governou.
O respeito à soberania das urnas e sua defesa perante possíveis
ataques, porém, não podem eximir os dirigentes bolivarianos de uma análise
acurada sobre os motivos que levaram, em apenas seis meses, à redução
importante de sua base eleitoral. A revolução amealhou 700 mil votos menos do
que em outubro de 2012, enquanto Capriles arrebanhou 570 mil a mais. Parte dos
eleitores chavistas não foi votar. Outra fatia, no entanto, trocou de lado.
Sobram razões, como se vê, para que a pulga esteja atrás da orelha.
Claro que, sem o carisma do ex-presidente, a esquerda ficou mais
vulnerável à mídia e, sem sua voz, é capaz do discurso de enfrentamento ter
soado excessivamente duro para alguns segmentos mais volúveis. Eventuais ações
de sabotagem contra o setor elétrico e outras áreas do cotidiano, denunciadas
pelos governistas desde o início da campanha, também podem ter auxiliado nesta
sangria, ao lado de casos crônicos de maus serviços e corrupção. Talvez seja o
caso, contudo, de buscar resposta mais estrutural, como assinalou o próprio
presidente eleito logo depois da apuração, ao conclamar o país à “renovação da Revolução
Bolivariana”.
Nova etapa da revolução
Há muitos indícios de que o primeiro ciclo deste processo tenha-se
esgotado. Desde que assumiu a liderança venezuelana, em fevereiro de 1999,
Chavez concentrou seus esforços administrativos em transferir a parte mais
expressiva dos excedentes petroleiros para programas sociais, universalização
de direitos e outras iniciativas de distribuição da renda. Os resultados foram
eloquentes. Andando na contramão do receituário neoliberal, a Venezuela passou
a ser a nação menos desigual da América do Sul, o analfabetismo foi liquidado e
a pobreza drasticamente reduzida.
Uma das consequências deste caminho foi a vasta ampliação do mercado
interno, como força propulsora da economia, mas aprofundando o desequilíbrio
histórico entre o ritmo de expansão do consumo popular e a velocidade do
crescimento da produção agrícola e industrial. O modelo da dependência
petroleira, que sempre inibiu o desenvolvimento interno venezuelano, não era o
alvo principal nos primeiros dez anos de chavismo, apesar de várias iniciativas
importantes terem sido tomadas. A questão estratégica era repartir os frutos da
exploração do ouro negro a favor dos mais pobres.
Neste quadro, a aceleração da demanda provocou fortes pressões
inflacionárias e sobre a balança comercial, com as importações minguando as
reservas cambiais. A esse desarranjo se soma o espetacular subsídio para a
compra de gasolina no mercado interno, que alguns cálculos apontam como
equivalente a 10% do faturamento da PDVSA, a gigante estatal do petróleo.
No programa eleitoral de 2012, Chavez já tinha deixado claras estas
dificuldades e anunciou um ambicioso programa de desenvolvimento produtivo. Não
viveu o suficiente para dar cabo desse objetivo, que caberá a Maduro enfrentar.
Concluído o ciclo inicial de resgate da dívida social, os capítulos seguintes
dependerão fundamentalmente dos músculos da economia não petroleira, de sua
capacidade para gerar oportunidades, empregos e renda. Sem essa plataforma, as
reformas distributivistas possivelmente ficariam, doravante, mais expostas a
problemas de financiamento.
O novo presidente terá que enfrentar inúmeros e urgentes desafios neste
terreno. Com as camadas populares ampliando rapidamente seu poder aquisitivo,
passaram a ser usuais crises de escassez, tanto de mercadorias e serviços
quanto de energia elétrica e água, amplificadas pela fuga de capitais como
mecanismo de chantagem das oligarquias. A conta política pode ter sido
apresentada nessas últimas eleições.
Para desatar esses nós, Maduro precisará estabelecer estratégia que
combine participação estatal com capital privado, nacional ou estrangeiro,
estabelecendo marco regulatório que enfrente os dilemas de infraestrutura e
produção. A receita com o petróleo, na ponta do lápis, não permite ao Estado
fazer todos os investimentos necessários, no prazo que ruge. Essas
preocupações, aliás, foram lançadas pelo ex-sindicalista na noite de sua
vitória, em que também destacou a necessidade de uma nova cultura de gestão,
contraposta à ineficiência, ao burocratismo e ao desperdício do dinheiro
público.
Ampliação do voto chavista
A implementação de programa desta envergadura, por fim, poderia ajudar
a formar uma nova maioria, que fosse além dos limites atuais do voto chavista,
atraindo inclusive pequenos e médios empresários que se sentiram desatendidos
ou até ameaçados pela primeira etapa do processo bolivariano, quando todas as
energias se voltaram para transferir renda do petróleo aos setores mais
despossuídos. E essa maioria ampliada também seria fundamental para apoiar
medidas amargas que venham a ser tomadas na reorganização da economia.
A legítima vitória de Nicolas Maduro, nessas circunstâncias,
eventualmente serviu de alerta para os problemas que rondam a revolução que
passou a chefiar, a maior parte deles provocada pelo sucesso inequívoco das
políticas de Chavez em construir um sistema de mais justiça social.
Breno Altman é jornalista, diretor do
site Opera Mundi e da revista Samuel.
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