A Associação Cultural José Martí/RN
“Casa da Amizade Brasil–Cuba” felicita o comandante Raul Castro por seus 82 anos de
vida.
Salim Lamrani
Contrariamente
a uma ideia amplamente difundida, particularmente no Ocidente, o debate crítico
está presente na sociedade cubana.
No
Ocidente, Cuba é representada como uma sociedade fechada em si mesma, na qual o
debate crítico é inexistente e a pluralidade das ideias é proibida por quem está
no poder. Na realidade, Cuba está longe de ser uma sociedade monolítica que compartilharia
um pensamento único. Com efeito, a cultura do debate se desenvolve mais a cada dia
e é simbolizada pelo Presidente cubano Raul Modesto Castro Ruz, que se converteu
no primeiro a falar dos reveses, das contradições, aberrações e injustiças presentes
na sociedade cubana.
A necessidade
de mudança e do debate crítico
Em
dezembro de 2010, em uma intervenção diante do Parlamento cubano, Raul Castro fez
um discurso mais alarmista e colocou o governo e os cidadãos frente às suas responsabilidades:
“Ou retificamos ou já acabou o tempo de seguir à beira do precipício, nos afundamos,
e afundaremos”1. Também acrescentou pouco tempo depois: “É imprescindível
romper com a barreira psicológica colossal que resulta de uma mentalidade arraigada
em hábitos e conceitos do passado”2.
Raul
Castro também reprovou duramente a debilidade do debate crítico em cuba. Também
reprovou os silêncios, a complacência e a mediocridade. Lançou um chamado para maior
franqueza: “Não é preciso temer a discrepância de critérios […], as diferenças de
opiniões, que […] sempre serão mais desejáveis do que a falsa unanimidade baseada
na simulação e no oportunismo. Trata-se de um direito do qual ninguém deve ser privado”.
Castro denunciou “o excesso de secretismo a que nos habituamos por mais de 50 anos”
para ocultar erros, falhas e equívocos. “É necessário mudar a mentalidade dos quatros
e de todos os compatriotas, acrescentou3.
Sobre
os meios de comunicação, disse o seguinte:
Nossa
imprensa fala bastante disso, das conquistas da Revolução, e nos discursos também
falamos muito; mas é preciso ir à medula dos problemas […]. Sou um defensor da luta
contra o secretismo porque é debaixo desse tapete onde se ocultam as falhas que
temos, bem como os interessados de que isso seja assim e de que tudo siga assim.
E eu me lembro de algumas críticas; “sim, tirem do jornal tal crítica”, orientei
eu mesmo […]. Imediatamente, a grande burocracia começou a se mover: “Essas coisas
não ajudam, demoralizam os trabalhadores”. Quais trabalhadores vão desmoralizar?
Como ocorreu em uma ocasião, na grande empresa estatal de leite El Triángulo. Levou
semanas, porque um dos caminhões dessa vacaria4, que estava lá em Camagüey,
estava quebrado, e então todo o leite que se produzia nas vacarias dessa zona, desse
lugar, eram jogados a uns porcos que estavam criando. Foi então que eu disse a um
secretário do Comitê Central para atender a agricultura nessa etapa, coloque no
Granma, conte tudo isso que está acontecendo,
faça uma crítica. Alguns vieram mim e até que: “Essas coisas não ajudam porque desmoralizam
os trabalhadores”. O que não sabiam era que eu o havia orientado5.
No
dia 1º de agosto de 2011, durante seu discurso de fechamento da VII Legislatura
do Parlamento Cubano, Raul Castro reiterou a necessidade do debate crítico e da
controvérsia na sociedade. “Todas as opiniões devem ser analisadas, e quando não
se alcançar o consenso, as discrepâncias serão levadas às instâncias superiores
facultadas para decidir e, além disso, ninguém está autorizado para impedi-lo6.
Convidou para acabar com “o hábito do triunfalismo, a estridência e o formalismo
ao abordar a atualidade nacional e a gerar materiais escritos e programas de televisão
e rádio, que, por seu conteúdo e estilo, chamem a atenção e estimulem o debate na
opinião pública” para evitar “materiais entediantes, improvisados e superficiais”
nos meios de comunicação7.
A corrupção
Raul
Castro tampouco se esquivou do problema da corrupção: “Diante das violações da Constituição
e da legalidade estabelecida, não resta outra alternativa senão recorrer à Fiscalização
e aos Tribunais, como já começamos a fazer, para exigir a responsabilidade dos infratores,
sejam quem forem, porque todos os cubanos, sem exceção, somos iguais perante a lei”8.
Raul Castro, consciente de que a corrupção também afeta os funcionários do alto
escalão, mandou uma mensagem clara aos responsáveis por todos os setores: “É preciso
lugar para acabar definitivamente com a mentira e o engano na conduta dos quadros
de qualquer nível”. De modo mais insólito, apoiou-se em dois dos dez mandamentos
bíblicos para ilustrar seus pontos. “Não roubarás” e “não mentirás”. Do mesmo modo,
evocou os três princípios éticos e morais da civilização inca: “não mentir, não
roubar, não ser folgado”, os quais devem guiar a conduta de todos os responsáveis
da nação9.
A liberdade religiosa
Da
mesma forma, Raul Castro condenou veementemente as derivas sectárias. Assim, denunciou
publicamente por televisão alguns atentados à liberdade religiosa devidos à intolerância
“enraizada na mentalidade de não poucos dirigentes em todos os níveis”10.
Citou o caso de uma mulher, quadro do Partido Comunista com trajetória exemplar,
que foi afastada de suas funções em fevereiro de 2011 por sua fé cristã e cujo salário
foi reduzido em 40% por violar o artigo 43 da Constituição de 1976, que proíbe todo
tipo de discriminação. O Presidente da República denunciou assim “o dano ocasionado
a uma família cubana por atitudes baseadas em uma mentalidade arcaica, alimentada
pela simulação e o oportunismo”. Ao lembrar que a pessoa vítima dessa discriminação
havia nascido em 1953, data do ataque ao quartel Moncada pelos partidários de Fidel
Castro contra a ditadura de Fulgencio Batista, Raul Castro disse o seguinte:
Eu
não fui ao Moncada para isso […]. Da mesma forma, recordávamos que o dia 30 de julho,
dia da reunião mencionada, eram completados 54 anos do assassinato de Frank País
e de seu fiel companheiro Raul Pujol. Eu conheci Frank no México, voltei a vê-lo
na Sierra, não me lembro de ter conhecido uma alma tão pura como essa, tão valente,
tão revolucionária, tão nobre e modesta, e dirigindo-me a um dos responsáveis por
essa injustiça que cometeram, eu lhe disse: Frank acreditava em Deus e praticava
sua religião. Que eu saiba, nunca deixou de fazê-lo. “O que vocês teriam feito com
Frank País?”11.
A produtividade, o salário mensal e a libreta
de abastecimento
Quanto
à produtividade e à política econômica, Raul Castro admite “uma ausência de cultura
econômica na população”, assim como os erros do passado. “Não pensamos em voltar
a copiar ninguém. Tivemos muitos problemas ao fazê-lo e porque, além disso, muitas
vezes copiamos mal”12. O governo cubano dá prova de lucidez quanto às carências
em matéria econômica. Reconhece que “a espontaneidade, a improvisação, a superficialidade,
o não cumprimento das metas, a falta de profundidade nos estudos de viabilidade
e a carência de completude ao empreender uma inversão” atentam gravemente contra
a nação13.
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Raul Castro e Che Guevara
durante Revolução Cubana
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Quanto
à renda mensal dos cubanos, Raul Castro dá provas de ludidez: “O salário ainda é
claramente insuficiente para satisfazer a todas as necessidades, pois praticamente
deixou de cumprir com seu papel de assegurar o princípio socialista de que cada
qual ganhe segundo sua capacidade e receba segundo seu trabalho. Ele favoreceu manifestações
de indisciplina social”14. Do mesmo modo, o presidente cubano não vacilou
ao salientar os efeitos negativos da libreta de abastecimento em vigor desde 1960
– particularmente, “seu nocivo caráter igualitarista”, que se converteu em “um peso
insuportável para a economia e em um desestímulo ao trabalho, além de gerar ilegalidades
diversas na sociedade”. Também apontou as seguintes contradições: “Como a libreta
está projetada para cobrir os mais de 11 milhões de cubanos por igual, não faltam
exemplos absurdos, como o café que abastece até os recém-nascidos. O mesmo acontecia
com os cigarros até setembro de 2010, quando era fornecido sem distinguir fumantes
e não fumantes, propiciando o crescimento desse hábito nocivo na população. Segundo
ele, a libreta “contradiz, em sua essência, o princípio da distribuição que deve
caracterizar o socialismo, ou seja, “de cada qual segundo sua capacidade, cada qual
segundo seu trabalho”. Por isso, “será imprescindível agir para erradicar as profunda
distorções existentes no funcionamento da economia e da sociedade em seu conjunto”15.
A troca geracional
Por
outro lado, Raul Castro também salientou a presença de um problema crucial em Cuba:
a troca geracional e a falta de diversidade. Denunciou “a insuficiente sistematicidade
e vontade política para assegurar a promoção de mulheres, negros, mestiços e jovens
a cargos decisórios, sobre a base do mérito e das condições pessoais. Expressou
seu despeito sem se esquivar de sua própria responsabilidade: “Não ter resolvido
este último problema em mais de meio século é uma verdadeira vergonha que carregaremos
em nossas consciências durante muitos anos”. Portanto, Cuba sofre “as consequência
de não contar com uma reserva de substitutos devidamente preparados, com experiência
suficiente e maturidade para assumir as novas e complexas tarefas de direção no
Partido, no Estado e no Governo”.
Todas
essas declarações foram feitas ao vivo na televisão cubana em horário nobre. Permitem
ilustrar a presença do debate crítico em Cuba no mais lato nível do Estado. Assim,
Raul Castro não é apenas o presidente da nação, mas também – segundo parece – o
primeiro dissidente do país e o mais feroz crítico das derivas e imperfeições do
sistema.
Notas
1 – Raul Castro Ruz “Discurso
feito pelo General do Exército Raul Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de
Estado e de Ministros, no encerramento do Sexto Período Ordinário de Sessões da
Sétima Legislatura da Asambleia Nacional do Poder Popular”, República de Cuba, 18
de dezembro de 2010. (site acessado em 2 de abril de 2011).
2 – Raul Castro Ruz, “Intervenção
do General do Exército Raul Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de Estado e
de Ministros, no encerramento do X Período de Sessões da Sétima Legislatura da Asambleia
Nacional do Poder Popular”, 13 de dezembro de 2012. (site acessado em 2 de janeiro
de 2013).
3 – Raul Castro, “Discurso…”, 18 de dezembro de 2010, op.cit. N. do T.:
estábulo ou local onde vacas são tratadas e seu leite é ordenhado à vista dos compradores.
Original: “vaquería”.
4 – Ibid.
5 – Raul Castro, “Toda resistência burocrática ao estrito cumprimento dos
acordos do Congresso, respaldados massivamente pelo povo, será inútil”, Cubadebate,
1º de agosto de 2011.
6 – Raul Castro, “Texto
integral do Informe Central ao VI Congreso del PCC”, 16 de abril de 2011. (site
acessado em 20 de abril de 2011).
7 – Raul Castro, “Toda resistência…”, op. cit.
8 – Raul Castro, “Discurso…”, 18 de dezembdo de 2010, op.cit.
9 – Raul Castro, “Toda resistência…”, op. cit.
10 – Ibid.
11 – Raul Castro, “ Discurso… “, 18 de dezembro de 2010, op.cit.
12 – Partido Comunista de Cuba, “Resolução sobre os alinhamentos da política
econômica e social do partido e a Revolução”, op. cit.
13 – Raul Castro Ruz, “ Discurso… “, 18 de dezembro de 2010, op. cit.
14 – Raul Castro, “Informe
central ao VI Congreso del Partido Comunista de Cuba“, 16 de abril de 2011.
(site acessao em 2 de janeiro de 2013).
15 – Ibid.
Texto retirado de Raul
Castro: O verdadeiro dissidente
Lido em Cuba Viva
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